Thursday, July 10, 2014

Chuva Cinza

Ai vai o desafio do dia, proposto pelo kas: Cena noir com algo meio sexy.
Pensado e 'escrivinhado' em 1h30' \o/



O som do velho telefone ecoa pela sala e parece revirar alguams folhas de jornal. Uma brisa cinza entra pela fresta da janela quebrada, empurrada para dentro pela chuva fria que cai lá fora. O telefone insiste, rouco. Ninguem reage ao som. A campainha insiste, cansada. Cinco, seis, sete vezes.
Do outro lado do escritório a chave gira em falso no trinco, a maçaneta é sacodida gentilmente e logo depois a porta toda vibra mais drasticamente. O solitário telefone toca.
-Merda.

Do lado de fora, diante da porta, alguem reclama socando a madeira. A palavra indecente derruba o cigarro dos lábios do homem, o soco deixa cair o jornal que carregava sob o braço.

-Mas que caralhos!

E o telefone, indiferente aos infortunios, toca.
O homem se abaixa com dificuldade, uma das mãos buscando o cigarro a outra o jornal enquanto o bolso do casaco derruba uma garrafa de bebida já vazia que bate ruidosamente contra o chão de madeira. Ele se levanta com um vigor recem encontrado pela ira. O telefone soa e a mão esquerda aperta o jornal com força, a direira devolve o cigarro nos lábio para uma longa traga enquanto a frustração corre pelos nervos para um golpe certeiro. Com um chuta o cantil de metal é arremessado violentamente para o outro lado do corredor. O impeto se apaga imediatamente conforme a trajetoria anuncia o desastre, em uma porta próxima o vidro se parte sonoramente e um salseiro de cacos pinga no chão.

-Que merda...

A voz agora é baixa enquanto o ombro se apoia na porta e as mãos vão ao trinco rapidamente, a urgência aumenta conforme a porta do outro lado do corredor começa a se abrir. Força. O ferrolho finalmente cede, dois passos são necessários para que ele possa recobrar o equilibrio ao entrar, mas não importa. O corredor havia fica do para tras. O jornal é jogado sobre uma poltrona de couro seco, escondendo um corte por onde escapa algum estofo. A mão direita tira o cigarro da boca, a esquerda busca o telefone:

-Alo!

Do outro lado o silêncio que parece eterno na verdade é muito breve, seguido do som continuo de linha. Não havia mais ninguem a espera.
O receptor volta para o gancho lentamente, toda a impaciência se dissipa, de vagar a mão vai ao bolso agora vazio...
O sopro de ar quebrado reaviva a braza na ponta do cigarro, o som de madeira se aproxima quando alguem bate, inutilmente, na porta que foi deixada escancarada:

-Isso é seu?

Pergunta a mulher na porta, levemente encostada no batente. Apoiado sobre sapatos elegantes de salto alto e fino, o preto da camurça contrastanto com a pele clara exposta a partir do dorso do pé, os tornozelos se cruzam logo antes do contorno da panturrilha se anunciar elegantemente na posição em que estava. A pele sem marcas desenha coxas firmes de formosura inegavelmente feminina. A cima disso o casaco vermelho nublava as graças, que certamente eram muitas, o cinto ao redor da cintura fina deixa uma pista das curvas sinuosas que se ocultavam e a seguir apenas botões e um tecido vermelho que a envolvia até o pescoço. Os cabelos louros eram volumosos e lhe caiam aos ombros em cachos soltos, olhos azuis emoldurados por silios longos e sombrancelhas finas em um rosto delicado e sóbrio, angelical ainda assim. Um anjo perigoso de sorriso vermelho e lábios volumosos que segurava em uma das mãos um cantil amassado de whisky, e repetia:

-Isso é seu?

Vidro quebrado

E a proposta aqui era: Escrever uma cena pos-apocaliptica.

Líquidos cristais, luz e cor dançam sem se preocupar com o foco, imagens amorfas num caleidoscópio de tirar o fôlego, espetáculo luminoso acima de mim, os portões do paraíso.

Existe uma certa elegância, algo de bonito que na realidade eu nunca tive tido tempo de apreciar antes. A luz e como ela se degrada em uma mera gota de chuva. Eu sei que um raio de luz se parte em diversos outros e cada fragmento de luz tem uma cor diferente. Eu estava feliz por estar embriagado pela sensação maravilhosa de ver tantas cores nas gotas de chuva que caem pelo fosso.
 Ecos na galeria. Eu viro minha cabeça para o lado apenas para me arrepender em seguida. A queda tinha me quebrado bastante e a dor era em picos que vinham de um suportável a agonia extrema. Os trilhos do metrô estão enferrujados e retorcidos e servem como apoio para que eu consiga espiar um pouco mais longe. Me distraio da beleza da chuva que me molha. Novamente eu volto ao mundo deformado e aleijado dos vivos. Agora eu sei que eu não deveria ter feito isso. Somos muito vulneráveis, controlamos muito pouco de nossas vidas, somos passageiros de uma existência e decidimos muito pouco. E quando eu tive a oportunidade de decidir, decidi errado. Decidi pobre. Decidi infeliz.

             Agora a gama de coisas que eu não pude decidir é muito maior. Eu não escolhi meu gênero, minha cor, ter nascido no ano em que nasci, meus pais e tudo que poderia ser determinado pelo meu material genético, minha nacionalidade, meu idioma mãe. Não decidi um bocado de coisas que, mesmo tendo responsabilidade por elas, eram aspectos, eram resultado, do que me foi impostos. Consequências razoáveis do poderia ser esperado de alguém com a minha criação. De alguém como eu. Coisas que poderiam ser esperadas de mim.
 Os grilhões do destino, correntes de elos de causa e consequência que nos manipulam como marionetes em uma peça cujo destino invariávelmente é trágico. Eu sempre soube disso.
             
             E com esta sabedoria vem uma certa revolta, um desgosto pelo cosmos, pelo universo determinista que a cada passo nos frustra e cerca, nos devolve nos trilhos.
 E nos trilhos do metrô eu estava, paranóico, nervoso, estava metaforica e literalmente nas mesmas condições, nos trilhos e seguindo exatamente para onde o destino queria que eu fosse. Condicionado para acelerar meu fim.
             Um vulto vem se formando nas trevas do túnel, mas minha visão ainda está ruim, eu vejo milhares de arcos-íris na chuva que cai sobre mim mas não consigo definir o que vem a diante. Minha audição já havia voltado, e mesmo ouvindo um zumbido fino e um ruído residual da bomba, eu conseguia ouvir um arfar. 


             Era um cachorro. Eu o senti se aproximar de mim, cauteloso e magro. Pelos molhados e sujos, eu o via conforme ele se aproximava. Antes da guerra, dizem que mantínhamos os cachorros como animais domésticos.
             Antes da guerra o planera fervilhava de pessoas, a população cresceu e construiu maravilhas, uma era de ouro magnífica onde havia o tempo para o estudo, para desenvolver todo o tipo de conhecimento. Até mesmo desenvolver as armas biológicas capazes de eliminar a nós mesmos. Impensável em teoria, mas quando os recursos foram se esgotando, quando a ultima colina foi carpida, e a última terra explorada o impensável tornou-se comum.
             A população mundial é uma só. Não existem mais barreiras cujas quais homens não transponham carregando nos próprios corpos os cavaleiros do apocalipse. Peste, Guerra e finalmente a fome… Todos preparam o campo para a morte.
             Sinto uma mordida na minha perna quebrada e grito. O cachorro pula para trás mas não foge. Eu sou moribundo e ambos sabemos disso. Porém o desgraçado está apressado demais e não quer esperar eu morrer. Meus devaneios são cortados pela adrenalina e meus olhos atentos já conseguem se perder na escuridão daqueles olhos castanhos e ferais que me fitam com ansiedade.

             Os cães são nossos órfãos, imunes ao vírus mas não muito capazes de se virar sem a mão humana. Gerações criadas para a servitude, escravos que lambem a mão que lhes fere não poderiam sobreviver em um mundo como o nosso… Ou ao menos, era isso que eu achava. Mas nada como estar cara a cara com um fato evidente para que nossas frágeis crenças sejam rasgadas pela emergência da situação.

             Desde a explosão da bomba e da minha queda aqui, minha mente tem vagado pelos lugares mais insólitos, recantos de memórias, teorias esquecidas e em toda a beleza que a curta insanidade que precede a morte trás. Ou seria a clareza do capítulo final da minha história? Agora já não mais importa ter saído, arma e mão e foco claro em buscar comida. Não importa toda a paranóia atrás de drones. De nunca sair para lugares desprotegidos ou abertos. Tudo isso já não importa porque minhas pernas estão partidas, uma poça de sangue se forma abaixo de mim. E eu sangro…

             Porém meu algoz se lança sobre mim, direto para meu pescoço. Os instintos dele com certeza não deveriam ser subestimados. O mundo estava acabando, a humanidade estava terminando assim como eu, estava em meu fim. Era muito engraçado ver todos os elos das correntes daquele meu destino tão claramente por entre as gotas de chuva, a luz do céu, o buraco pelo qual caí… Os instintos dele contra os meus instintos; eu deveria ter olhado a chuva, não ter ligado para o cachorro e ter terminado ali tudo.
             Mas não… Eu olhei… E meus instintos contra os dele quebraram aquele encanto lindo, o portão do paraíso havia se fechado e eu estava ali, sendo morto. Doía. Não sei exatamente como eu tirei a faca do cinto e acertei o cachorro. Mas agora sentia seu peso morto sobre o meu corpo. 

             E eu sangro agora, olhando para cima, tentando achar aquelas luzes lindas, as cores e a paz. Tentando ver aquela poesia toda que me trazia paz. Eu queria muito desistir mas o destino não parecia que iria me deixar. Lágrimas vem nos meus olhos e esta é a única gota que eu vejo conforme a faca deixa a ferida do cachorro e eu sorvo aquele sangue.

             Maldito destino… Maldito mundo moribundo que nunca desiste. Maldito eu, Seleno, que sobrevivo apenas para prolongar este meu final. Inexorávelmente dragado para o fim e ainda assim relutante em aceitar o inegável.